Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]
Vanessa dorme com todos os homens. Perde-se em camas sem se amarrar. Deixa que lhe beijem o percurso da pele. que lhe arrepiem os sentidos, que a prendam em promessas. Dorme com eles sem regras, hoje sim, amanhã também, o tempo é um fio fininho e galopa ao ritmo a que Vanessa aceita no seu corpo o peso dos homens. Estranha forma de absolvição, a da carne. A angústia que teima em se agarrar ao céu da boca, o vazio que fica quando os homens adormecem no cansaço e Vanessa retoma o caminho dos cigarros acesos e queimados sem que os fume.
Há noites em que o peito se aperta até expulsar o ar. Exercício de vida, ir de mansinho ao encontro da morte. Fica serena, os olhos fechados e o ar a sair num sopro insuspeito. Quando não aguenta mais, abre a boca e os olhos ao mesmo tempo e é como se acordasse. Sente o peito que acelera e sabe que ainda não acabou. O seu corpo é como uma casa esvaziada de tudo para que se parta para outra casa. Ficam caixotes por abrir, memórias gastas e espalhadas pelo chão. Nas paredes, os furos que outrora sustentaram quadros e fotografias muito nítidas.
Há uma névoa, um desgaste suave mas corrosivo. Nesta casa viveu gente. No corpo de Vanessa nunca morou ninguém. Os homens não são homens nem são números. Não têm nome nem corpo nem nada que os distinga entre si. São homens. Jovens e velhos a quem faltam dentes ou erecções, homens casados e gastos por vidas pouco animadas, caçadores furtivos agradados com a presa morena que não sabe sorrir. Vanessa não escolhe. Abre as pernas e deixa que a carne se imponha à carne, como se apanhasse na gare um comboio que não viu chegar e ficasse, ao mesmo tempo, no cais a ver o seu próprio corpo partir.
É doloroso o tempo em que não se reconhece. Da memória sabe pouco. Não recorda sequer o seu nome, por isso escolhe um ao acaso se lhe perguntam como se chama. Depois usa esse até se esquecer. O que faz hoje amanhã não será mais do que uma vaga recordação, uma névoa, algo com que podia ter sonhado.
Não sabe se algum dos homens com que dorme se deitou com ela antes. É provável. Não sabe por onde anda, a que sítios foi. Não reconhece sequer o caminho que a leva a casa, mas traz sempre consigo um papel gasto onde há muito tempo escreveu a morada. Às vezes, num exercício de memória, repete várias vezes o caminho para casa, tentando não se esquecer. Esquece-se sempre.
Olha-se ao espelho todos os dias e é como se olhasse para alguém que nunca viu. Não se reconhece. Não se recorda se sempre foi morena nem que idade tinha quando fez esta cicatriz. É como se morasse numa casa vazia, a que falta mobília, paredes nuas, quartos despidos. Não sabe se nesta casa vive gente. No seu corpo nunca morou ninguém.