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Coração nas mãos #02_sempre à mesma hora

12.11.13

Acordava sempre à mesma hora. Repetia rotinas que criava como rede para um funâmbulo. Odiava o improviso. Gostava da segurança de saber os dias todos iguais, de saber com antecedência com o que podia contar. Planeava cada fuga à rotina com o máximo de antecipação, para que pudesse habituar-se à ideia e para que nada lhe soasse estranho ou pouco familiar.

 

Tudo na sua casa era produto de aturado estudo. As coisas estavam ordenadas da forma que comprovara ser a mais eficaz. O objectivo, mais do que o perfeccionismo, era que tudo estivesse sempre no mesmo lugar e acontecesse sempre da mesma maneira. Não havia um desalinho, uma ponta solta, nada a quebrar a suave monotonia da previsibilidade.

 

Era contabilista. Não apreciava nada que envolvesse criatividade. Matemática era matemática, não era preciso inventar nada, bastava seguir fórmulas para obter resultados. Nada inesperado pode surgir da matemática. Repetia dia após dia os mesmos procedimentos, as mesmas contas, os mesmos passos.

 

Não convivia com colegas nem era dado a conversas de corredor. Era solitário e não queria ser de outra forma. Criara uma espécie de ilha em seu redor e as águas eram tão fundas e turvas que ninguém ensaiava sequer uma aproximação.

Deixara de visitar a família na altura em que as constantes perguntas acerca da sua solidão passaram de expectáveis a incómodas. Os pais já tinham morrido, os irmãos viviam suficientemente longe para que não precisasse de se inquietar com visitas inesperadas, os sobrinhos mal conheciam aquele tio estranho e psicótico que vivia demasiado afundado no seu mundo e não tinham nele qualquer interesse.

 

A solidão não era uma mágoa. Era um cenário.

 

Uma vez por mês, sempre a uma quinta-feira, saía do escritório depois de terminar diligentemente todas as tarefas do dia, passava em casa, comia qualquer coisa preparada de véspera, vestia o seu fato preto e saía sem ser notado. Quem o visse pressuporia um encontro amoroso: assim se justificava a barba bem escanhoada, o perfume que se sentia no ar e o ar aprumado.

 

Apanhava um táxi que pagava sempre com notas pequenas. Pedia que o taxista o deixasse no princípio da rua, onde a iluminação era escassa e não se ouvia mais do que um ou outro latido canino e o som de uma televisão sintonizada nas notícias. Ajeitava a gravata, limpava o suor das mãos nas calças perfeitamente vincadas e seguia pela rua procurando fazer o mínimo barulho possível. Os cães já lhe conheciam o cheiro e não ladravam à sua passagem. Aprendera a caminhar sem que as capas dos sapatos ressoassem na calçada. Esquivava-se dos halos de luz trazidos ao chão pelos candeeiros. Evitava projectar sombras na parede. Se conseguisse chegar ao final da rua sem se fazer notar teria conseguido cumprir o seu primeiro objectivo.

 

Gastava sempre dois minutos na esquina que encontrava a rua por onde viera e a rua para onde ia. Puxava um cigarro, que não fumava mas que usava como desculpa para estar ali parado, olhava para todos os lados, levantava os olhos sem levantar o queixo e fazia como que uma radiografia às janelas, procurando habitantes que pudessem tê-lo visto. Se calhasse estar alguém à janela – alguém a fumar um cigarro antes do sono merecido ou a sacudir as migalhas da toalha do jantar, a apanhar ou a estender roupa ou simplesmente a apanhar o ar fresco da noite – terminava o cigarro e descia a rua, que havia de desembocar perto de uma praça de táxis. Apanharia o segundo táxi da noite e regressaria a casa. Era este o plano a que nunca precisou de recorrer. Nunca morador nenhum o viu, por isso apagava sempre o cigarro que não chegava a fumar e seguia rapidamente pela esquerda, até ao número trinta e sete. Tocava à campainha que se abria sem que ninguém perguntasse nada. Subia as escadas ligeiro e entrava no primeiro B, onde a porta aberta o aguardava. Ajeitava de novo a gravata preta, deslizava pelo corredor até encontrar a porta que dava para as traseiras. Descia dois degraus e chegava a uma espécie de anexo. As janelas cobertas de vapor denunciavam o espaço. Demasiada gente para a dimensão da sala, demasiadas pessoas a respirar o mesmo ar saturado de fim de Verão, o espaço mal arejado e sem ventilação. Ficava à porta uns breves instantes, a sentir a vibração do lugar. Apesar de toda a preparação, só ali se sentia verdadeiramente dentro da personagem. A sua personagem de uma quinta-feira à noite, uma vez por mês, todos os meses, sem falhas, sem imprevistos, sem alterações.

 

Dava por si a bater o pé ritmicamente. Tum. Tum. Tum.Tum. Três segundos bastavam para que toda a preparação fizesse sentido. Deslizava para o primeiro ponto que captasse a sua atenção. Geralmente, uma morena alta, esguia, de batom vermelho e pernas bem torneadas. Punha-lhe a mão na cintura e puxava-a com força. Enlaçava-a como se fosse amarrá-la para não mais a libertar. Deixava que o ritmo subisse por si e dançava. Olhava-a nos olhos. Apaixonava-se ali. Duraria enquanto durasse aquele tango. Dançava com toda a paixão ausente dos seus dias milimetricamente iguais. Dançava com toda a ânsia que desfazia nas rotinas obsoletas e sufocantes. Soltava amarras e permitia-se ser quem realmente era. As mulheres que dançavam com ele, geralmente morenas empedernidas, sucumbiam àquela garra latina, ao ritmo certo, ao sexo latente. E subiam com ele os dois degraus de volta ao corredor escuro, onde ele as prendia de encontro à parede, sem que lhe oferecessem resistência, sem que questionassem o gesto sequer. E ali, naquele clube de tango clandestino, uma vez por mês, a uma quinta-feira, tomava-as por suas nos minutos que durava o sexo feito dança, o tango feito vida.

 

Ajeitava depois a gravata, limpava as mãos suadas às calças húmidas, alinhava o cabelo e saía de novo para a rua, onde repetia todo o ritual de quem precisa de não ser visto. Transmutava-se assim que cruzava a esquina que dava para a rua mal iluminada por onde caminhara ao início da noite. Voltava a ser o homem invisível de sempre. Retomava as rotinas incorruptíveis. Sacudia das mãos o tremor e regulava novamente a respiração. Desvanecia-se nas ruas da cidade e não voltava a existir até à quinta-feira escolhida do mês seguinte. Era exímio na arte de não existir e exímio na arte de ser exactamente quem era.

 

 

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1 comentário

De rosa chiclet a 12.11.2013 às 22:57

Estou viciada neste coração das mãos..

tens um talento enorme para a escrita..

continua assim..

kisses***

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