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Eu costumava pensar que me arderiam os olhos queimados pelas lágrimas. Acreditava que o tempo não curava coisa nenhuma, antes aprofundava feridas já de si apocalípticas. Costumava acreditar que a vontade não me bastava nem nunca poderia ser gatilho para uma hipotética salvação. Costumava ceder perante as intempéries, render-me às evidências, acatar e aceitar o que cruzava o meu caminho e que tantas vezes me fazia tropeçar.
Acreditei no destino enquanto rede de funâmbulo - por muito que eu caminhasse apoiado no vazio, a rede aplacaria a queda, se a houvesse. Acreditei que não valeria a pena lutar contra marés mais poderosas do que eu, que era apenas um corpo sobre a terra, uma vida e pouco mais.
Depois vieste tu. Poderia escrever mil poemas acerca da noite em que nos cruzámos, a noite gelada em que não sentimos frio nos ossos. O rio a embalar-nos as preces, a vida a correr devagar e nós parados, como numa fotografia. Deixámos que a paixão nos invadisse, não erguemos barricadas, não organizámos defesas. Acatámos todos os sorrisos acreditando que eram sinal de amor. E foram.
Demos uso aos dias que nos foram oferecidos, aproveitámos o tempo para perceber o que era isto de amar alguém além de nós mesmos. Quisémos, inclusive, perpetuar a doce magia que nos tocou gerando filhos a partir do teu ventre.
Depois, um dia, quando nada o faria prever - porque as histórias são sempre assim, improváveis e tortuosas -, não voltaste para casa. Saíste e não voltei a ver-te. Depois da angústia de não saber de ti, depois do medo de que te tivesse perdido para sempre, de que tivesses morrido de repente, veio a certeza de que a tua vontade ditou o teu caminho. Soube-o mais tarde, por um dos nossos filhos. Estavas bem e estavas longe. Disseste que te tornei a vida num inferno e que por isso fugiste. Disseste que aguentaste até ao limite das tuas forças e que depois não te restou senão seguir viagem. Sem mim. E eu chorei. Chorei porque não percebi, durante trinta anos, o mal que te fui fazendo. Chorei porque vi na minha solidão a tua, abandonada a uma vida monótona e sem sumo, anos e anos a fio. E chorei de raiva, por nunca te ter mostrado que podias partilhar comigo tudo, inclusive tristezas. E com o tempo secaram as lágrimas. Mas o sossego, esse nunca chegou.