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Coração nas mãos #01_O cheiro do medo

05.11.13

Tenho uma cabana de madeira já meio apodrecida, num terreno baldio onde nunca passa ninguém. Ao lado, tenho uma pequena horta cuidada que justifica a existência da cabana – alberga utensílios vários e faz as vezes de armazém. Ao fundo, um pequeno regato fornece a água necessária à rega da plantação. E não só.

Deixo a carrinha na entrada do campo, quando já não é possível avançar mais. Agora entardece cedo, quem andava nas hortas certamente já regressou a casa, para o banho da ordem enquanto o jantar não aparece na mesa. Arrasto-a sem fazer barulho – não é muito pesada, é relativamente fácil transportá-la. Garanti que não haverá gritos e que não teremos visitas indesejadas. Ela debate-se sem sucesso. Já deviam saber que, quando são apanhadas, não têm salvação possível; mas não sabem. Lutam sempre, como se agarrassem a vida toda naquelas breves horas que já não valem nada, que não são mais do que as últimas horas daquela vida. Deviam poupar-se, mas nunca o fazem.

 

Abro a cabana e sento-a na cadeira. Prendo-lhe as mãos atrás das costas, destapo-lhe os olhos e explico que lhe tiro a mordaça se prometer não gritar. E que, ao primeiro grito, ficará sem língua. A fila de frascos alinhados à sua frente é um bom dissuasor de gritos: nos frascos há línguas conservadas em formol; nem são muitas, sete, apenas, que fui obrigado a cortar. Na morte, como na vida, as promessas são para cumprir.

Os olhos dela são a definição do medo – as pupilas dilatadas são demasiado verdadeiras. Tiro-lhe a mordaça e ela cumpre com a sua parte: não grita. Talvez tenha perdido a voz, acontece amiúde. Baixo-me para ficar exactamente de frente para ela e explico o que vou fazer.

“Agora vais ficar quieta, não adianta gritares, não adianta gastares energia. Poupa-te, que é o melhor que podes fazer. Vou matar-te, acho que já percebeste isso. Estás longe de tudo, mesmo que gritasses ninguém poderia ouvir-te. E a tua língua acabava ali, num frasco, como as línguas das mulheres que não respeitaram esta regra simples. Vais morrer e vai doer. Vou retirar-te um pequeno pedaço de pele, que depois hei-de guardar. Vou cortar-te dois dedos, que nunca hão-de ser encontrados. Não te preocupes, o teu corpo vai ser limpo e deixado num sítio onde será facilmente encontrado. Ninguém vai ter que andar à tua procura para sempre. Eu sei… eu sei… és nova e não vais poder fazer nada do que planeaste. Paciência. Não chores. Não vale a pena. Podes ter medo. Aliás, deves ter medo. Sou sádico, eu sei. É o teu medo que me alimenta e, por muito que não queiras, vais ter medo. Depois hás-de desmaiar e, quando morreres, já não vais sentir mais nada. Prometo.”

 

A cabana cheira a mofo, a madeira velha, a ferrugem e a medo. É isto que me move, este cheiro inconfundível do medo. Sangue, suor, lágrimas, saliva – o medo é uma equação feroz. É a animalidade. É a alma a ser purgada. O medo é o fim e o início; é o gatilho. A última satisfação. Não me dá particular prazer matar; não o acto de matar em si. O que me excita, o que me estimula é o cheiro do medo, aquela combinação voraz de odores primitivos que me traz de volta ao centro, que me mostra quão primários somos. Se eu pudesse ter este cheiro sem matar, teria. Mas não há medo mais poderoso que o medo da morte. E este, depois de provocado, tem que ser concretizado. Só assim se propaga e continua. Só assim sei que posso voltar a sentir este cheiro que me resolve.

 

Levanto-a da cadeira e deito-a numa mesa de madeira e metal que construí com esmero. Prendo-lhe os pulsos e os tornozelos por forma a expor os seus membros e poder chegar onde quero. Puxo-lhe o cabelo para trás com força, fazendo-o cair para fora da mesa. Começa a surgir a dor, o massacre da dor, o potenciador do medo feroz. Ela sua em profusão. Ainda não desistiu de viver, não se rendeu, e ainda bem. Se já se tivesse abandonado à sua sorte deixaria de ter razões para sentir medo e perder-se-ia este cheiro, o cheiro que antecipa a morte. Com um bisturi, desenho-lhe uma elipse na pele do interior da coxa esquerda; retiro aquele pedaço de pele sem cerimónias. Ela arrepia-se, os membro retesam-se, ela abafa um grito. Da mão esquerda corto-lhe o anelar, num ritual de compromisso – eu sei, sou um psicopata diagnosticado, plenamente consciente da sua mente retorcida. Ela grita, mais por instinto do que por vontade, pelo que me limito a abrir-lhe um golpe na face, em jeito de aviso: mais um grito e acrescentarei uma língua ao meu portefólio. Sinto-lhe o travo agridoce do suor, vejo as gotículas que se formam na sua pele. Excito-me rapidamente – acontece sempre, mas nunca concretizo impulsos sexuais. As mulheres que capturo não me servem de alívio hormonal, nenhuma foi violada, nenhuma foi sequer tocada intimamente. Da mão direita corto o indicador, o dedo que atribui culpas, que identifica culpados. Simbólico, sim, mas apenas isso; não quero os dedos para nada, não são troféus embora possa parecer que sim. Servem-me para transmitir uma mensagem a quem encontra os corpos delas, mas essas mensagens ainda não foram entendidas. Nunca ninguém sequer se aproximou de mim desconfiando que me pertence o histórico de mulheres mortas, algumas sem língua, todas sem dois dedos.
Ela já esteve perto do desmaio que lhe antevi. Abrandei e ela recuperou o suficiente para que eu pudesse tornar a investir. Faço-lhe um golpe fundo na palma do pé direito – ela é dextra e é este o seu pé forte. Não poderia andar, mesmo que conseguisse escapar. Está perto o momento em que a poderei soltar. Ela soçobrará e não precisarei de usar a força. Aproximo o bisturi da virilha. Ela não percebe o que estou a fazer, talvez esperasse uma morte diferente. Faço um corte fundo em cima da artéria femoral. O sangue jorra com demasiada força para que consiga estancá-lo. Ela desmaia perante a visão do sangue, mais do que pelo efeito da dor. No ar, o cheiro… sempre o cheiro. Depois do suor, é o cheiro do sangue que me activa. A morte virá depressa, mas o cheiro continuará a pairar por muito tempo. No fundo é isso que me interessa: que o cheiro perdure.

 

A seguir vem o trabalho ingrato. É preciso tirar daqui o corpo, limpá-lo, levá-lo até um sítio onde não demore muito a ser encontrado. Calculo que a esta hora já andem à procura dela. Não sei que idade tem, não sei nada sobre ela. Sei que estava no sítio errado à hora errada, como acontece sempre nestes casos. Para mim, foi precisamente o contrário; foi como se encontrasse um tesouro.

Arrasto-a até ao regato. Entretanto já anoiteceu e a única luz que há é a da lua em quarto crescente, quase cheia. Limpo-a com cuidado, sem me preocupar demasiado. Só quero que se perceba que não foi violada, que houve cuidado, apesar da violência da morte que lhe causei. Embrulho-a num lençol e carrego-a de volta à carrinha. Volto à cabana para guardar o que restou deste idílio e para sentir de novo o cheiro que ainda paira no ar. O odor férreo do sangue sobrepõe-se a todos os outros. Hei-de demorar muito a limpar tudo, mas isso será tarefa para amanhã. Hoje preciso de entregá-la a quem a procura. Talvez seja a minha forma de mitigar o mal que fiz, de procurar um resquício de redenção. Talvez seja a minha maneira de dizer ao mundo que, apesar de tudo, este é o meu modo de amar, de me entregar e de ser eu.

 

[Este texto foi publicado na Papel. Recupero-o hoje para trazer de volta os contos que fui publicando por aqui. À terça-feira, daqui em diante.]

 

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2 comentários

De rosa chiclet a 07.11.2013 às 21:24

Adorei este texto, se tivesse um livro publicado ia comprar para saber mais desta história :)

Eu coloquei o link no meu blog espero que não te importes..

http://rosa-xhiclet.blogspot.pt/2013/11/dos-textos-que-vale-muita-pena-ler.html

kisses***

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