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Quando as palavras todas não cabem na saudade, como é que fazemos? Acordei hoje a pensar em si. Vi-o do fim para o início. Primeiro, morto, em cima da cama, um lenço outrora branco, agora amarelado pelo tempo a segurar-lhe o queixo para que o rosto não perdesse a forma. Morto e frio, cinzento, com o sangue estático e a alma ausente. Depois doente, descolorido e esquálido, deitado em cima do sofá, sempre cheio de frio, com a vida a abandoná-lo devagarinho. Depois sentado à porta, na cadeira de rodas, a beber um batido e a fumar um cigarro, a dizer que qualquer dia se acabava tudo (e ainda faltava tanto). Sentado no banco de ferro pintado de verde, com o sol quente do agosto alentejano a bater-lhe nas pernas, doente, com a sentença de morte assinada mas ainda assim a querer viver, a gostar de viver, a ter todos os dias razões para viver. Depois cá, na cidade onde viveu quase toda a vida, já velhote mas ainda capaz. A encher cartuchos com chumbo, enquanto me ensinava o processo, eu a ajudá-lo, você a contar-me histórias de caça pelo caminho. Depois comigo, de mão dada na rua, eu com dentes de leite já caídos, uma mohila amarela às costas, a regressar da escola para ir almoçar ali, no meu ninho, na casa dos avós. Almoçávamos sempre na sala, cada um com um banco à frente, a televisão ligada para entreter. Os mimos, as histórias, os beijos, a vida, a herança genetica que me deixou. Que deixou em todos nós, que somos iguais a si, uns fisicamente, outros nas preferências. Eu, neta mais velha, tenho tanto de si dentro de mim. A fatia maior é esta saudade gigante, uma gárgula imponente que me rasga todos os dias. Um amor, que mesmo vivo em monólogo há cinco anos, é maior a cada dia que passa. Porque não se esquecem os amores mortos, nem se enterra quem levou tanto de nós e deixou na nossa carne o que tinha de melhor em si.